9 de jan. de 2014

Mãe cuida da filha em coma após ser sugada em piscina, há 16 anos

Há 16 anos, a secretária-executiva aposentada Odele Souza, 65, viu a filha Flavia, à época com dez anos, entrar em coma irreversível após ter os cabelos sugados pelo ralo da piscina do prédio onde moravam, em São Paulo.
Conseguiu provar, por meio de perícia, que o condomínio havia mudado inadvertidamente o sistema de limpeza da piscina, o que potencializou a sucção do ralo.
Após 12 anos de briga judicial, o condomínio e a seguradora foram condenados ao pagamento de indenização.
Atualmente, ela luta para que o país aprove uma lei federal para tornar as piscinas mais seguras. Também mantém um blog dedicado à filha, hoje com 26 anos, que segue em estado vegetativo.
Era 6 de janeiro de 1998. Fazia calor e minha filha desceu para a piscina com outros três adolescentes. Ela sabia nadar desde pequena. De repente, ela mergulhou e a sucção do ralo a prendeu pelos cabelos no fundo da piscina.
Os colegas estavam de costas e não perceberam que ela estava se afogando. Não sabemos quanto tempo se passou até que um vizinho viu pela janela que ela não se mexia e gritou.
Meu filho tentou puxá-la, mas ela não vinha porque estava presa pelo cabelo no ralo. Precisou arrancar uma mecha para soltá-la. Já estava inconsciente, com parada cardiorrespiratória, roxinha.
Chamamos o resgate, ela foi levada para o hospital e ficou 35 dias na UTI. Ao todo foram oito meses de hospital até voltarmos para casa com home-care. Ela nunca saiu do que os neurologistas chamam de coma vigil [estado vegetativo permanente].
Respira sem ajuda de aparelhos, mas não fala, não se move, só se alimenta por sonda, todas as secreções precisam ser aspiradas.
Comecei a investigar o que tinha acontecido. Lembro-me que, mesmo no frio, eu colocava o maiô e ia para piscina. Colocava uma boneca perto do ralo para ver se ela seria sugada. Nada acontecia.
O zelador dizia: “A senhora é teimosa, já disse que esse ralo não suga cabelo de ninguém”. Eu insistia: “Mas sugou o cabelo da minha filha!”.
Não sugava mais porque a bomba de sucção estava desligada. Percebi que eles jamais admitiriam qualquer responsabilidade espontaneamente. Decidi recorrer à Justiça.
Procurei nove advogados e nenhum quis abraçar a causa. Há 16 anos, ninguém tinha ouvido falar sobre isso. O décimo advogado, após pesquisar casos semelhantes no exterior, assumiu o caso.
Começamos uma batalha judicial e processei a seguradora do condomínio, o condomínio e o fabricante do equipamento de sucção.
Após uma perícia determinada pela Justiça, descobrimos que, por sua conta e risco, o zelador tinha trocado o motor da bomba de sucção da piscina por outro mais potente. Essa troca foi feita sem nenhuma orientação técnica.
A piscina tinha 43 metros cúbicos de água e o motor antigo era de 0,50 cavalos. Foi retirado aquele motor e colocado um de 1,50 cavalos, que, segundo a perícia, era adequado para uma piscina muito maior, de 103 metros cúbicos de água.
Ao fazer isso, a piscina virou uma roleta-russa. E minha filha foi a vítima.
Também processei o fabricante do ralo porque uma empresa que fabrica e comercializa produtos que podem colocar em risco à vida de seus usuários precisa colocar alertas do tipo “esse motor é adequado para uma piscina de x litros de água”. Na época, isso não existia.
Enfrentei uma batalha judicial de 12 anos, passei muitas dificuldades financeiras e nunca me conformei com o que tinha acontecido com a minha filha.
Em 2012, o condomínio e a seguradora do condomínio foram condenados. É com o dinheiro da indenização [ela não revela o valor] que eu consigo manter a estrutura para cuidar dela, com técnicas de enfermagem e fisioterapeuta.
Minha rotina é bastante espartana. Acordo às 5h15 para dar a primeira refeição à Flavia, por sonda, às 5h30. Às 8h, chega a técnica em enfermagem que faz a higiene dela, o banho de leito, massagem no corpo, às 9h chega o fisioterapeuta, às 10h ela toma água é retirada da cama e colocada na cadeira de rodas.
Às 11h, toma mais alimentação enteral. Às 12h30, desce para o jardim do prédio.
Às 13h30, volta para cama e é higienizada de novo. Às 14h, recebe um suco e virada na cama. Ela precisa de vigilância 24 horas por dia, senão ela se afoga [com a própria saliva].
A técnica fica até as 20h e depois sou que cuido dela sozinha até o dia seguinte. Fico com um olho aberto e outro fechado. Desenvolvi uma audição muito aguçada. Se ela faz qualquer ruído, pulo da cama e corro até ela.
Depois de anos de um profundo luto, comecei a perceber que outras crianças estavam sendo vítimas do mesmo tipo de acidente. A maioria não é fatalidade, é por negligência. E não dos pais.
Se a piscina onde seus filhos vão nadar está com o motor superdimensionado ou com o ralo quebrado, os pais não têm nem conhecimento e nem obrigação de verificar isso. Os locais que administram essas piscinas é têm essa obrigação de manter esses locais seguros. Existem hoje ralos com dispositivos que, mesmo que a criança encoste o cabelo, eles não sugam.
Em 2007, decidi criar um blog para alertar as pessoas para o perigo das piscinas e contar o dia a dia dos cuidados com a minha filha.
Comecei a pesquisar muito sobre legislação e, em 2010, vi que estava tramitando na Câmara Federal um projeto de lei para tornar as piscinas mais seguras no país, mas que não tratava da questão dos ralos, das cercas de proteção e salva-vidas.
Eu me juntei a dois peritos em segurança de piscina. Fizemos um projeto técnico e, em 2011, entregamos ao deputado Darcísio Perondi (PMDB-RS), mas nada aconteceu desde então [o parlamentar diz que está tentando apressar a tramitação da matéria e submetê-la à votação em plenário até março].
Acredito que se esse projeto já tivesse sido votado e aprovado, todos esses acidentes poderiam ter sido evitados. A lei por si só não funciona, precisa ser seguida de fiscalização e punição. É o que acontece com as leis de trânsito.
Por que um ralo de piscina fica sem a tampa, sem proteção ou enferrujado? Porque não tem punição. É um absurdo que 16 anos depois do acidente da Flavia as piscinas continuem sendo verdadeiras armadilhas submersas.
Vou continuar lutando para ver essa lei aprovada e funcionando. É uma forma de resgatar a cidadania da minha filha que foi roubada. Quando eu procuro pais de outras vítimas dos ralos, eles dizem: “Eu quero esquecer. Nada que eu faça vai trazer meu filho de volta”.
Eu penso diferente. Essa lei não vai servir para a minha filha, nada vai trazê-la de volta. Os médicos dizem que o estado é irreversível. A minha dor também é irreversível.
Mas quando a gente usa a dor coletivamente, você transforma essa dor de luto para luta. Acaba dando um certo sentido a algo que não tem nenhum.
Que sentido tem uma criança de dez anos, linda, saudável, perder todos os sonhos como aconteceu com a minha menina? Eu quero que outras crianças não passem pelo o que minha filha passa e que outras mães não passem pelo o que eu passo.
É uma perda lenta e diária. Lembro-me da vozinha alegre dela e começo a imaginar o que ela poderia estar fazendo hoje adulta.
Com o blog, é como se eu estivesse dando voz à minha filha. É como se, mesmo em coma, ela estivesse agindo, atuando. É a nossa janela para o mundo.
 Fonte: Jornal o Cotidiano

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